REVISTA DE TRABALHOS ACADÊMICOS – UNIVERSO BELO HORIZONTE, Vol. 1, No 3 (2018)

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A constitucionalização do direito internacional – mito ou realidade

Gustavo Vieira

Resumo


Gustavo A M Vieira

Professor Universo Salvador

RESUMO: TRINDADE, Otávio Cançado. A constitucionalização do direito internacional – mito ou realidade. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: a.45, n.178, abr-jun/2008, p.271-284.

A constitucionalização do direito internacional comumente faz referência a tratados constitutivos de organizações internacionais. O âmbito de análise deste trabalho remete à juridificação objetiva das relações entre sujeitos do direito internacional no sentido kantiano atribuído na Paz Perpétua. Kant propugnava em sua obra a consubstanciação de uma constituição republicana cosmopolita, embasada nos ideários de liberdade e igualdade, assecuratórias da paz no plano internacional, fim último do direito. Em última instanciam o cosmopolitismo decorreria do próprio imperativo da razão prática.

O conceito de Constituição em seu matiz grego ensejava concepção diversa. Voltado à unidade da Polis, o pensamento grego debruçava-se sobre a consecução da Eunomia, enquanto fórmula política de boa ordem. Particularmente, Aristóteles na Política, estabelece o conceito de Politeia, descrita como ordenação das diversas funções de governo de uma cidade, destinada à composição razoável de diferentes interesses do corpo social. No Medievo, de ordem ideal, a noção de constituição passou a referir-se à ordem vigente, delimitando a capacidade normativa dos diferentes centros de poder da política medieval. Buscava-se, outrossim, manter um equilíbrio plural, nos moldes de uma constituição “mista”, que conjuga elementos distintos [transjuridicismo], em especial as relações entre Império e Igreja.

Especificamente, o termo “Constituição” fora incorporado ao léxico político no século XVII seja por alusão metafórica a uma concepção orgânica da sociedade, seja por alusão ao instituto romano-canônico de constitutio. Sua semântica moderna, porém, tem origem no processo de afirmação jurídico política das colônias inglesas nas Américas.

A Modernidade vai aderir à mens constitucional o apanágio da soberania. Em um ambiente social convulsionado pela revolução burguesa, teóricos como Jean Bodin propugnam um núcleo rígido e inalterável do poder político. Thomas Hobbes, em sua célebre tese homo homini lupus busca fundamentar o poder absoluto do soberano através de uma perspectiva contratualista. Jacques Rousseau mantém a perspectiva de contrato social e incontrastabilidade soberana, mas retira sua titularidade do soberano Leviatã e apõe-na no povo. Já a perspectiva contratual de John Locke, já as vistas dos excessos cometidos no processo revolucionário, volta-se às limitações do poder soberano sob um viés liberal. Para além das teses contratualistas, o período pós-Revolução encontrará em especial em Hegel um deslocamento da titularidade da soberania em um núcleo estável fundamental: trata-se da personificação do Estado.

A superação dessa concepção eminentemente estatal operacionaliza-se com o advento de Weimar em prol de um núcleo inviolável de direitos fundamentais, sujeitando-se o legislador a um irrefragável controle de constitucionalidade. A discussão que se trava então é sobre o guardião da ordem constitucional: o chefe de Estado (Carl Schmitt) ou um tribunal constitucional (Hans Kelsen). Trata-se da tensão permanente entre “lógica da diferença” ou “lógica da equivalência”, nos termos de Chantal Mouffe.

Nesse quadro, a pretensão de um direito internacional objetivo sempre fora objeto análises jurídicas associando-se em especial ao jus gentium. Em sua matriz romana, o direito das gentes decorria de certa recta actio inerente à humanidade. Com a instituição da ordem de Westfália, o jus gentium dá lugar ao jus inter gentes, de escopo mais limitado. Volta-se este último à coordenação entre os membros do sistema internacional que se forma: os Estados nacionais, excluídos os indivíduos.  

Em sentido contrário, positivo, não voluntarista e de manifestação consuetudinária, Francisco Suarez advogava pela fonte ética do direito internacional; já Hugo Grócio aduzia-o ao consenso entre as nações. Essa visão subjetivista do direito internacional fora consagrada no caso Lótus (1927), pela Corte Permanente de Justiça, mas enfrentou fortes críticas. Trata-se do clássico dilema doutrinário internacionalista: de um lado (a) a posição voluntarista / consensualista / ascendente / de apologia à vontade do Estado; de outro (b), a posição objetivista / não consensualista / descendente / de utopia à uma moralidade natural.

Na esteira do pensamento objetivista, a escola neonaturalista alemã  (Verdross, Simma) recorreu à ideais de justiça e bem comum, ao passo que a escola sociológica italiana (Santi Romano) à existência de uma comunidade internacional. Em ambos os casos, restava imprescindível um pressuposto objetivo à juridicidade internacional, um imperativo de jus cogens, que aufere perenidade à constituição internacional. Essa discussão foi trazida à baila nas Conferências de Paz de Haia de 1899 e 1907, com especial contribuição da doutrina alemã (Kohler, Schücking). A escola sociológica francesa (Scelle) de larga influência durkheimiana, atribui à conformação do direito internacional o aporte de fatos sociais; trata-se de uma constituição decorrente de uma sociedade internacional.

No entre-guerras, Verdross (discípulo de Kelsen) correspondia a constituição da comunidade internacional ao direito consuetudinário e tratados multilaterais como o Pacto Briand-Kellog. Atualmente, o autor advoga esse status à Carta da ONU, do ponto de vista hierárquico-formal. Outros autores como Mosler e Tomuschat a constituição da sociedade internacional deriva de valores jurídicos fundamentais que adjudicam o modus de criação e aplicação do direito no plano mundial. Nessa linha, a Carta da ONU seria uma concretização parcial da ordem constitucional internacional, mas com ela não se identifica. Sob um prisma objetivo, essa ordem constitucional decorre de determinadas valores de elevado teor ético, consubstanciados tanto:   nas normas de jus cogens celebrado no art. 53 da Convenção de Viena de 1969 sobre Tratados Internacionais como na responsabilidade internacional erga omnes dos Estados, consagrado no caso Barcelona Traction (1970) [RV]. Este último entendimento foi reafirmado na Opinião Consultiva nº 9/2004 sobre a construção do “muro da vergonha” em territórios palestinos pelo Estado de Israel.

Para Debora Cass, Constituição refere-se a arranjos formais de governo; Constitucionalismo a plexo axiológico liberal; e Constitucionalização ao processo de institucionalização formal desses valores.  Koskennieni é refratário à tese de constitucionalismo internacional em vista à ausência de consenso sobre valores comuns ou a inexistência de um Poder Constituinte de sede mundial. A opção seria conceber o direito internacional enquanto projeto político de razão prática, ideia reguladora do plano jurídico normativo da ordem global. Otávio Cançado Trindade, porém, considera residir justamente na abertura dissensual pluralista a ratio essendi de um modelo constitucional internacional. 

A dotando uma aproximação analógica, a constitucionalização do direito internacional aproveita, dos antigos, o conceito de eunomia, enquanto “boa ordem”, voltada à solução pacífica de controvérsias; do período medieval, aproveita o pluralismo entre diferentes paradigmas normativos; da modernidade, dois aspectos centrais: a ideia de existência de um núcleo rígido (jus cogens) e de limites e garantais direitos fundamentais (direitos humanos). Nessa linha “pode-se dizer, portanto, que a constitucionalização do direito internacional é a reprodução de conceitos do constitucionalismo nacional no direito internacional”.





ISSN 2179-1589

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